21 outubro, 2011

DONA MARIA HELENA: RECORDAÇÃO E HOMENAGEM

Dona Maria Helena de Sousa tinha um excelente coração mas era de personalidade irascível. Todos nos recordamos das entregas dos trabalhos de desenho em que ela, se não tinha por onde pegar na execução, punha a folha em contra luz e descobria o buraco deixado pela ponta do compasso. E estava tudo estragado. Lá voltávamos nós para o lugar, a mal dizer a sorte e o “raio da mulher que nunca tá contente com o que a gente faz!”
Um dia caprichei e lá fiz um belo desenho que representava um vitral. Ela olhou, remirou, virou o papel para a janela, pôs os óculos para ver bem ao perto e resmoneou. “Não está mal…não está mal… Vai-te lá sentar.” E lá vim eu para o lugar, todo ufano e temendo ainda um chamamento de última hora, alguma coisa de que ela se lembrasse…
Fiquei tão orgulhoso da obra que ainda a guardo nos meus papéis. Dei com ela há dias. Vejam esta boniteza:
Uns dias depois a D. Maria Helena mandou-nos fazer um babete. Tratava-se de treinar o traço a tinta da china e encontrar uma solução decorativa a condizer com o facto de se tratar de uma coisa para bebé.
Todos nós tínhamos na caixa  (em folha de alumínio, pintada a verde por fora, onde guardávamos os apetrechos de Desenho, todos se lembram bem… ),  uma montanha de desenhos em papel vegetal, para aplicar quando fosse preciso. Lá fui à procura de uma coisa bonita para um babete e encontrei: um pintainho muito fofinho, de biquinho aberto, uma ternurinha! Decalquei-o, juntei-lhe duas florinhas azuis, pintei tudo e fui mostrar a obra. A D. Maria Helena despachou-me logo: “Então tu não vês que isto está muito nu? E faltam os nastros do babete…”
A coisa estava mais ou menos assim (na altura ainda não tinha os nastros): 
Volto para o lugar, a matutar naquilo. “Muito nu? O que é que ela quer mais…”##!»»??##!!
Vou à caixa, mexo e remexo, ainda pensei pôr mais dois pintainhos – uma ninhada! – até que encontrei! É isto mesmo!
E de língua ao canto da boca lá pespeguei e pintei os complementos que iriam deslumbrar a Dona Helena.  Chego ao pé dela e meto-lhe folha à frente. 
Eh! D. Maria Helena do caraças! Parecia que tinha caído um raio na secretária! Dá um pulo, pega na folha e amanda um berro que ainda hoje me zune aos ouvidos: “Que é isto? Que é que tu aqui fizeste, Duaaaaaarteeee????”
E abanava a folha, a cabeça, as mãos, a coruscar-me com os olhos. E eu sem perceber o porquê de tanto alarido.
“Ó rapaz, então tu não vês que isto fica aqui mal?  Não vês? NÃO VÊÊÊÊS? Não és cego, pois nãããão???? … tu desaparece-me com isso daqui pr’a fora!!!!!”
E eu desapareci. Sentindo-me desgraçado mas… convencido de que estava a ser vítima de uma grande injustiça. Só passados anos percebi a cólera da querida professora D. Maria Helena.
Vejam lá vocês se ela não tinha razão para me dar um par de chapadas:
No original que também guardei, a coisa ainda é mais chocante, por causa dos nastros berrantes – que mais parecem mangueiras de regar os morangos.
Isto foi há 50 anos. Aqui fica a minha homenagem a uma das fundadoras do nosso Colégio, a Dona Maria Helena de Sousa, com quem privei mais tarde, já em adulto. A primeira vez que fui às Berlengas foi ela que pagou a viagem e a mais alguns guineenses que estavam a passar férias em Peniche com a senhora Dona Adília, que lá alugou uma casa.
De outra vez pagou-me um lanche de gelados em Lisboa, numa casa que havia na Av. João XXI, a melhor da época, e onde ela se banqueteou com duas taças enormes, numa satisfação de gordinha e anafada, apreciadora da boa mesa. Facto que comprovei mais tarde, num almoço confecionado por ela na sua casa de Santarém, um verdadeiro banquete de iguarias e guloseimas que eu, guloso como ela, jamais esqueci .
Dona Maria Helena era uma força da natureza. Sendo uma artista – pintava muito bem! – não se importava nada de subir a um andaime e dar orientações aos pedreiros. A ela se deve a obra do colégio, que orientou como se fosse mestre-de-obras. Idealizou uma piscina e mandou abrir o buraco, embora depois não fosse possível a construção. Mais tarde atulhou-se o buraco e no seu lugar foi erguido o ginásio, que ainda perdura, uma novidade absoluta naqueles tempos. Lembro-me bem de a ver no meio da obra, a dar ordens… estava eu talvez no meu 3º ano – em 1961.
Mais tarde, quando o Colégio entrou na fase das dificuldades insuperáveis, foi ela que pegou no leme e conduziu o barco até à venda do edifício, adquirido pela Câmara ou pelo Estado – não sei bem, nessa altura já eu andava longe, apenas ouvia dizer. E o Colégio ainda resistiu mais um ano ou dois, numa casa alugada na Rua Silvestre Bernardo Lima…
Dona Helena foi depois trabalhar como professora em Santarém e lá criou a Casa do Professor, a sua grande e última iniciativa, para a qual me quis associar, o que não aceitei pois morava em Torres Vedras
Há muito que Dona Helena nos deixou. Com todo o carinho, com muito respeito e saudade, dedico este escrito à sua memória.
Joaquim Moedas Duarte

4 comentários:

  1. Adorei o que disseste sobre a D. Maria Helena.
    Fez-me recordar outras situações. Fartei-me de rir. Tu és o máximo.
    Até ao encontro

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  2. Grande Moedas, sempre em grande estilo!
    Margarida

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  3. Nunca mais me esqueço de uns cartazes que a D. Maria Helena nos mandou fazer, com um intuito muito "à frente" (como se diz agora)para a época.
    Os cartazes tinham com objetivo chamar a atenção das pessoas para o facto de ser pouco higiénico cuspir para o chão.Era a famosa Campanha contra a cuspidela...
    Adorei o que escreveu sobre o episódio com a D. Maria Helena.

    Não irei estar presente no encontro de sábado, por motivos pessoais. Irei, certamente, saber as novidades. Abraço Hélia

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  4. Lembro-me bem da campanha contra o cuspir no chão... e como ela ainda hoje seria necessária.

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