15 outubro, 2011

Memórias do “Ecos da Juventude”

 Joaquim Moedas Duarte
DE COMO EU FUI UM GRANDE JORNALISTA
O Joaquim Feliciano enviou-nos a cópia do primeiro número do ECOS DA JUVENTUDE. Bela ideia, que muito agradeço. Também guardo um exemplar. De repente fui atirado para o passado e aterrei num sótão do Colégio, que era onde funcionava a redação do jornal. A Direção deu-nos aquele espaço com umas mesas e cadeiras e nós sentávamo-nos lá, muito importantes, depois de termos subido por uma escada de caiador que a Dulce detestava e que a D. Helena subiu, uma vez, com risco de a partir toda ao peso dos seus quase cem quilos…
O Montargil era o Diretor e usava gravata e casaquinho clássico. Sabia como se faziam jornais a stencil e dava as orientações. Quando eu lhe disse que nunca tinha escrito à máquina e não sabia como trabalhar com o stencil, ele foi assertivo: “Desenrasca-te”.
E lá fui eu para a secretaria, chagar a D. Luzia, que era serigaita, sujeita a estados de alma mas boa pessoa quando não estava com os afrontamentos. O que eu amarguei com aquilo! O stencil era um tipo de folha de papel fino que servia de matriz para impressão. Eu escrevia à máquina com a técnica da galinha a bicar milho e enganava-me muitas vezes, o que exigia a aplicação de um verniz corretor, vermelho. No final, a folha parecia uma camisola do Benfica. O Montargil olhava para aquilo com um ar desanimado e só dizia: “Eu quero ver como é que isto vai sair…” . Saía mal, tá claro, as letras mal se percebiam. “Tens de fazer outra, pá!” – decretava o Montargil, do alto da diretoria.. E lá ia eu outra vez para a secretaria onde passei horas de agonia e desespero, persistência alimentada pela ilusão de ser um grande jornalista.
O prémio foi ver o meu nome escarrapachado na página 2 do primeiro número. A ilusão virara realidade!
 Mal sabiam vocês o que aquilo me tinha custado…


Joaquim Moedas Duarte
O MEDO DA LIBERDADE
Estou na dúvida: escrever isto em tom de chalaça ou, pelo contrário, dar-lhe tinta séria?
Passo a contar e logo se vê. Na página 4 do ECOS, nº 1, saiu um soneto da autoria da L.G. (Isabel Gameiro, salvo erro), intitulado “Ansiedade”.
Eu, que às vezes rabiscava uns poemetos a imitar Bernardim Ribeiro – não fazia por menos! – achei o soneto uma coisa do outro mundo e roí-me de inveja. Nunca seria capaz de chegar aos calcanhares daquilo!
O jornal saiu, nós todos orgulhosos a pavonear importâncias e de repente alguém veio dizer-me: “Há uma reunião na redação, é urgente, o Dr. Pereira quer falar com a gente…”
Lá subimos a escada de caiador, parecíamos trupe de circo, cada um vai para a sua mesa e ficamos à espera. Ia ser a nossa coroação, o elogio ao nosso trabalho, um jornal com 6- folhas- 6!
Até que do buraco da escada surge a careca do Dr. Pereira e logo a seguir o homem todo, com uma cara congestionada, vermelha, os olhos a saltarem, engasgado de ira. Eh lá! Que é que se passa? – tremi eu.
E ele desata a desengasgar:
- “Eu avisei! Eu fartei-me de avisar! Eu FARTEI-ME DE AVISAR!!!” – aqui, o Montargil deve ter levado com uns salpicos de espuma da boca do avisador. -  “É preciso ter muito cuidado com o que se escreve! Avisei muitas vezes!!!”
Eu estava varado de espanto. O que é que nós fizemos de mal? Queres ver que ele descobriu que eu tive de gastar três folhas de stencil? Ou trocámos as folhas ?
E ele rapa de um jornal, abre na página 4 e bate com a mão espalmada em cima do soneto: “Isto não podia sair! Isto é um perigo! ISTO É UM PERIGO!!!” – mais espuma pela boca, olhos desorbitados, o Montargil a passar o lenço para enxugar os gafanhotos e o suor frio.
Eu ainda não estava a perceber. E o Dr. Pereira: “ Vocês já viram bem o que aqui está escrito? “
E toca de ler um dos versos mais revolucionários do maldito soneto: “Ser livre, livre completamente”.
“Percebem? Não estão a perceber? Isto pode ser mal interpretado! O jornal tem o emblema da Mocidade Portuguesa! Vir para aqui falar de liberdade? Isto pode trazer muitos problemas! Não estão a perceber? E eu avisei! EU TINHA AVISADO!!!”
Ainda disse mais coisas mas eu já não ouvia. Nem percebia. Sentia-me esmagado pela decepção. Na ingenuidade dos meus 15 anos achava que merecíamos um discurso de louvor e afinal…
Quando ele se sumiu pela escada abaixo, ainda a soprar de indignação, ficámos a olhar uns para os outros, em silêncio.
Anos mais tarde é que percebi. Foi quando aprendi o significado da palavra “fascismo”.

PS: Julgo que não exagerei no relato. Os outros que viveram esta cena comprovarão.
No entanto, quero deixar aqui uma palavra de apreço ao Dr. Pereira, que espero abraçar no dia 29. Não era fácil ser professor naqueles tempos opressivos…


E VENHAM OUTRAS COLABORAÇÕES

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