27 outubro, 2011

RECORDAÇÕES (Joaquim Moedas Duarte)

DENTADURA AO FUNDO *

Por meados dos anos 60 do século passado fixou-se em Alpiarça uma família de três professores açorianos, de apelido Serpa, todos irmãos: a D. Ângela, mais velha e o José, que eram professores do 1º Ciclo; e o mais novo, António, que começou a frequentar o Externato de S. Paulo para completar o 5º ano liceal.
Estou certo de que muita gente ainda se lembra destas pessoas. Nomeadamente o Joaquim Nascimento que veio a tornar-se apicultor por influência e orientação do pai destes irmãos Serpa, quando ele aqui esteve uns meses em casa dos filhos, antes de emigrar para a América. A senhora D. Adília, diretora do Colégio, também os apoiou muito, facto que eles reconheciam com gratidão.

Travei-me de grande amizade com os rapazes e tornámo-nos companheiros de passeios de bicicleta. Ilhéus como eram, sufocavam longe da água. As excursões ao Tejo eram, por isso, quase diárias no verão. Eles eram nadadores exímios, e muito galhofavam com o meu estilo quadrúpede de nadar, aprendido no tanque do meu amigo Leonel Piscalho. Eu esperneava e esbracejava, enquanto eles singravam de leve sobre a água, como os cisnes do antigo lago das Portas do Sol.
Passado um ano ou dois, o José entrou de noivado com uma senhora de Santarém. E na véspera do casório, onde se havia de fazer a despedida de solteiro? Nas praias do Patacão, está bem de ver. Como setas, a pedalar por aqueles carreiros fora, lá fomos direitos ao Tejo. A primeira coisa foi perguntar ao barqueiro quais os sítios perigosos. E como havia umas moedas pelos bolsos, resolvemos alugar um barco avieiro, garantia de tarde bem passada, a fintar os ramos dos salgueiros, a bordejar as ilhotas de areia à procura dos melhores sítios para mergulhar, a retesar os músculos com o impulso dos remos con­tra a corrente.

Estava uma tarde esplendorosa de sol. Remando, mergulhando, nadando, por ali andámos horas infindas. O José Serpa de vez em quando lembrava-se do dia seguinte e do casamento e fazia uma cara amarelenta de nervoso. A família da noiva era gente de brios sociais, onde ele se sentia contrafeito, desconfortado de tanta cerimónia. E via-se já, entalado no fato, a beijar a mão à sogra. Eu e o António acirrávamos a tremedeira dele, com dichotes e macaquices. Mas o José Serpa estava pior do que pensávamos: a certa altura, com os balanços do barquito e a digestão talvez parada do nervoso, amanda as mãos às goelas e dá um arranco que parecia querer largar a alma. Foi o almoço todo borda fora e com ele... a dentadura de cima, que lhe compunha dois buracos bem na frente da boca. Deu um berro de aflição e o António, apercebendo-se do sucedido, mergulhou de imediato. Andou que tempos lá por baixo, fez-se enguia rente às areias do fundo, mas qual quê?! Nem com uma rede de arrasto! Veio acima, de olhos esbugalhados, respirou numa sofre­guidão, e lá foi outra vez. E mais outra. E mais outra. Também tentei, armado em herói, sem ver um palmo à frente, naquelas águas baças e remexidas.
Já na margem, atirámo-nos para o chão, desalentados. À socapa, eu e o António fungámos de riso, mas disfarçámos bem, para não agravar o ânimo do Zé que nem que­ria acreditar naquela desgraça. Estava lívido, a tremer. O irmão ainda voltou ao rio e esquadrinhou por onde pôde até à exaustão. Chegámos a Alpiarça já noite fechada.
Sei que no outro dia, pela madrugada, os dois Serpas ainda voltaram a desafiar o rio. Mas, da dentadura, nem uma lasca.
Impossível adiar o casamento e o José Serpa, muito enfiado, suportou estoicamente o vexame. As fotografias que ele depois nos mostrou fixaram a memória daquela tarde fatídica no Tejo: lá se vê o José Serpa, de boca franzida, a disfarçar os buracões do meio da boca.
Rir do facto, ele só o conseguiu uns dias depois, substituída a placa postiça e ame­nizada a lembrança de uma desdentada lua-de-mel.
Os Serpas ainda por aqui ficaram mais uns anos mas no início dos anos 70 abalaram para a América, a juntarem-se ao pai. Nunca mais soube nada deles.
Resta a recordação de uma dentadura ao fundo…

(* Baseado num texto publicado por mim na VOZ DE ALPIARÇA, em 15 de outubro de 2002)

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